Uma crítica contumaz que se faz ao automobilismo como esporte é que ele premia os melhores carros. Quem tiver o equipamento superior ganha, ou quase sempre. Bem, é precisamente por isso que a modalidade tem o nome que tem.
Por isso, muito mais humano seria o atletismo, desde que obviamente ainda disputado por pessoas, não por robôs, como se viu outro dia na China. Aqui, a vitória é consequência exclusiva do esforço do atleta.
Mas, especialmente para os fundistas, os atletas podem tirar alguma vantagem da tecnologia que começa a ser embarcada pesadamente nos tênis. Numa comparação com o automobilismo, os tênis poderiam ser os pneus —ou mais do que isso: as escuderias.
Validada a aproximação, a Asics seria a McLaren, que atualmente lidera, com folga, o campeonato de construtores de Fórmula 1. Na maratona de Boston, fetiche do fetiche do maratonista amador e ao mesmo tempo importantíssima etapa do “circo” do atletismo de alta performance, disputada segunda-feira passada (21), deu Asics no masculino, com a vitória do –surpresa!– queniano John Korir.
Korir usou uma variação da família Metaspeed, “supertênis” com placa de carbono e peso que pode chegar, na versão Sky+, a 188 gramas. A altura da sola, que hoje mal chega a assustar quem outro dia calçava tênis minimalistas, bate em 39,5 mm no calcanhar.
No site oficial da Asics no Brasil, modelos do Metaspeed Sky Paris e Edge Paris custam R$ 2.199,00.
No feminino, a vencedora, Sharon Lokedi, queniana, claro, usava um Under Armour Velociti Elite 3, de 250 gramas. No Brasil, o modelo Elite 2 é vendido a R$ 1.999,99 no site oficial da marca.
A vitória na alta performance tem um apelo de vendas apreciável, considerando que os tênis dos superastros chegam quase sem delay às lojas —e, portanto, a nós, amadores. O que pessoas que normalmente não precisam ganhar um ou dois segundos numa prova de três ou quatro horas vamos fazer com esses tênis, bem, essa é outra história.
Tudo bem: a grande tarefa do marketing, se me lembro bem das primeiras aulas do mestrado marromeno que cursei, é transformar desejo em necessidade. Com outras palavras, alguém já falava disso no século 19.
Adaptamo-nos a tudo, dizem, mas eu sigo fiel aos tênis mais convencionais, sem placa, mas mesmo esses hoje mais parecem tamancos por conta da altura da sola. Eles vendem o que a indústria chama de “responsividade”, a capacidade de oferecer propulsão extra por conta do material usado na entressola, já comparada por avaliadores a trampolins.
Estaria bastante feliz com a onda de tênis minimalistas, que foi avassaladora há uma década e meia, mas que não deixou qualquer registro, ao menos nas lojas multimarcas brasileiras. A propulsão ficava por conta da musculatura do pé, estimulada precisamente pela ausência de um amortecimento entre ela e o chão.
Numa ironia da história, a Asics tem como alguns de seus modelos icônicos os históricos e minimalistas Tiger México 66 e Tiger Pinto, este último celebrado na capa do grande best-seller da corrida, o “Guia Completo da Corrida”, de James Fixx, lançado em 1977.
Fixx já era crítico do “drop”, a diferença de altura entre o calcanhar e os dedos do pé, que começava a surgir nos modelos de sua época. Ele pedia um calcanhar quase a tocar o chão.
Achariam hoje que Fixx estaria a falar grego. Ou uma língua de algum povo originário que nem mesmo seus descendentes compreendem.
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