8 de janeiro: diferentes pesos e medidas


Congresso Nacional
Foto: Leonardo Sá/Agência Senado

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O que não falta a esta coluna é autoridade para discutir o tema da anistia aos presos pelos atos do dia 8 de janeiro de 2023. Afinal, ela já falava desse assunto muito antes dele saltar para o centro do debate político brasileiro.

Isso mesmo. A anistia foi proposta aqui muito antes do tema entrar na pauta do Congresso Nacional. Isso aconteceu há cerca de um ano e meio, na edição de 13 de agosto de 2023, quando a medida foi defendida para uma parte das pessoas que estiveram na Esplanada dos Ministérios naquele dia fatídico.

A ideia apresentada foi a de anistiar os manifestantes que ocuparam o gramado da Esplanada dos Ministérios apenas para exercer o direito de protestar contra o governo. E que, mesmo tendo se mantido distantes das sedes dos Três Poderes, foram presos e tratados com um rigor que não se aplica a manifestantes de outras causas — como, por exemplo, o grupo de militantes que atacou e tentou incendiar o prédio da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) para protestar e pedir a cabeça do presidente Michel Temer, em dezembro de 2016.

Seja como for, a sugestão da anistia, ainda que parcial, aos manifestantes de 8 de janeiro, é claro, foi recebida com desdém e até ridicularizada. Simpatizantes da esquerda trataram a possibilidade de se anistiar os manifestantes que apenas gritaram palavras-de-ordem e empunharam cartazes contra o governo como algo completamente fora de cogitação. E reagiram como se qualquer pessoa que, no dia 8 de janeiro, tenha ousado levantar a voz contra o governo do PT, merecesse arder por toda a eternidade no fogo do inferno. O melhor a fazer, diziam, era esquecer aquele absurdo.

Em banho-maria

Pois bem… Na semana passada, a anistia que antes era tratada como um tema a ser ignorado, arrombou a porta, invadiu a cena política com força total e tem gerado dissabores justamente para os que se recusaram a discuti-la. Na verdade, o assunto vinha crescendo e só não era percebido por aqueles que, como habitualmente fazem, preferem enxergar a realidade apenas à luz dos próprios interesses.

Dias atrás, uma manifestação pela anistia, com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro, na orla de Copacabana, no Rio de Janeiro, foi vista pelos simpatizantes do governo como um fracasso por não ter reunido as multidões que o ex-presidente já tinha conseguido mobilizar em outros momentos.

Muita gente viu nos clarões que havia entre as pessoas de camisetas amarelas que ocuparam o asfalto da avenida Atlântica o sinal de que o tema da anistia não era capaz de mobilizar opinião pública.

E talvez a ideia perderia o fôlego se o presidente da Câmara Hugo Motta não tivesse entrado em cena e mostrado para que serviu sua presença na comitiva que acompanhou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Japão e ao Vietnam.

Os deputados do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, vinham recolhendo assinaturas em um projeto que propunha a anistia para todos os participantes dos atos de 8 de janeiro. Motta, na campanha que o levou à presidência da Casa, havia se comprometido, em troca do apoio dos deputados do PL, a não criar obstáculos para a tramitação da matéria.

Acontece, porém, que depois de passar 30 horas a bordo do jato presidencial, ele parece ter se esquecido do compromisso que assumiu. Na volta ao Brasil, desembarcou dizendo que a questão não deve ser tratada agora e propôs criar uma Comissão Especial para tratar do assunto.

A intenção do presidente da Câmara era de cozinhar o tema em banho-maria até que o calendário eleitoral de 2026 obrigasse os parlamentares do PL a cuidar de suas campanhas e deixassem essa questão embaraçosa para depois.

Os deputados da maior bancada no Congresso, claro, se sentiram traídos por Motta e isso parece tê-los estimulado a dar o troco na mesma moeda. O presidente da Câmara garante que não tratou da tramitação da anistia com ninguém durante a viagem — e quem quiser concorrer ao título de ingênuo do ano tem toda liberdade para acreditar.

O certo é que os parlamentares do PL passaram a obstruir os trabalhos nas comissões temáticas da Câmara e prometem manter essa estratégia até o projeto da anistia entrar na pauta.

Eles querem que o assunto, inoportuno para o governo, seja levado a plenário e submetido a votação nominal, sem passar pela análise de comissões. Isso significa, na prática, que as matérias propostas pelo governo para tentar recuperar a popularidade cada vez mais declinante, avançarão a passos de tartaruga até que Motta cumpra a promessa que fez.

Penas desproporcionais

Não importa o que acontecerá com o projeto. Ele pode ser rejeitado ou aprovado. Se for aprovado, pode ter sua constitucionalidade questionada por algum partido nanico e submetido à aprovação do Supremo Tribunal Federal (STF), como virou praxe em Brasília.

O certo é que o tema da anistia ganhou corpo e, tenha o desfecho que tiver, custará caro ao governo.

Também é certo que, se tivesse feito diferente e, em vez de defender um tratamento rígido contra todos os seus opositores, optasse por defender penas mais razoáveis para os manifestantes que não agiram com violência, o governo talvez tivesse conseguido impedir que o debate sobre anistia ganhasse a dimensão que ganhou.

E mais: a questão não teria chegado às ruas da maneira que chegou nem se transformado em uma pedra a mais no sapato do governo. Só que agora é tarde e a confusão está armada.

O tema já deixou de ser um assunto para ser tratado entre políticos e ganhou as ruas.

O deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) publicou um vídeo em que faz uma série de críticas ao governo e ao STF e defende com clareza a bandeira da anistia.

Só no primeiro dia, as visualizações chegaram a quase 40 milhões de pessoas. E não é só: ao contrário do que aconteceu com a manifestação de Copacabana, poucas semanas atrás, a divulgação de um novo ato pela anistia previsto para acontecer neste domingo, dia 6, na avenida Paulista, em São Paulo, com a presença de Bolsonaro, do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e de outras lideranças da direita, ganhou uma dimensão enorme.

É prematuro falar do peso dessa manifestação antes de conhecer os detalhes do que se desenrolou na avenida Paulista. Seja como for, o certo é que o governo não precisaria estar arcando neste momento com o ônus pela manutenção de tantas pessoas presas e condenadas a penas desproporcionais aos crimes que cometeram — como a maioria dos brasileiros parece convencida de que está acontecendo — se a ideia da anistia proposta aqui há quase dois anos, em vez de ridicularizada por partidários da esquerda, tivesse sido levada a sério.

Em tempo: antes que alguém diga que as condenações não são determinadas pelo governo, mas pelo STF, convém lembrar que as pessoas nas ruas já estabeleceram, pelo menos em relação a este caso, uma ligação direta entre o Executivo e o Judiciário.

Por mais que isso incomode aos dois poderes, está cada vez mais claro que a sociedade tem olhado com grande desconfiança para as decisões tomadas por um tribunal com tantos ministros tão intimamente s ligados a Lula.

‘‘Perdeu, mané”

Quando esta coluna tocou pela primeira vez no assunto da anistia aos presos do 8 de janeiro, no dia 13 de agosto de 2023, o STF ainda não havia proferido as primeiras sentenças contra os manifestantes.

Quando fez isso, as penas foram duríssimas.

Um a um, todos foram condenados por abolição violenta do Estado Democrático de Direito; dano qualificado ao patrimônio público; golpe de Estado; deterioração de patrimônio tombado; e associação criminosa. As penas foram de, em média, 15 anos de prisão, em regime fechado, para cada réu.

A situação chegou a seu limite semanas atrás, quando o ministro Alexandre de Moraes estipulou para a cabelereira Débora Rodrigues dos Santos, que usou um batom para escrever a frase “Perdeu, Mané” na estátua de Alfredo Ceschiatti, em frente ao prédio do STF, uma pena de 14 anos de prisão em regime fechado.

Para se ter uma ideia do rigor dessa pena, basta lembrar que em 1970, em plena Ditadura Militar e sob a rigidez do Ato Institucional nº 5, a então guerrilheira e, mais tarde, presidente da República Dilma Rousseff, acusada de integrar grupos envolvidos na luta armada contra o regime, foi condenada a seis anos e um mês de prisão. E que, depois de ter a pena revista pelo Superior Tribunal Militar, foi libertada em 1972.

Se a comparação com as penas impostas pelo regime militar não for suficiente, aqui vai outra: o tratamento aos presos do dia 8 de janeiro tem sido mais rigoroso do que é dado pela Justiça aos assaltantes, traficantes, assassinos e outros criminosos que, cada dia mais, mantêm a sociedade como refém. Será que a sociedade concorda com isso?

Narrativas e fatos

De qualquer forma, o rigor das penas imputadas a Débora e aos demais condenados pelo 8 de janeiro se apoiavam não nas evidências nem na precisão da peça acusatória — mas, sim, nas “narrativas” dos acontecimentos.

Aliás, foram justamente elas, ou seja, “as narrativas”, o tema do artigo publicado neste espaço no dia 13 de agosto de 2023, em que, pela primeira vez, se tocou no tema da anistia.

O que se via naquele momento era o seguinte: todas as pessoas ligadas ao governo anterior que, de alguma forma, foram envolvidas no processo receberam tratamento de culpadas e condenadas mesmo antes da apuração dos fatos.

Já as autoridades empossadas no dia 1º de janeiro de 2023, que eram responsáveis pela guarda dos prédios do Executivo no dia 8 de janeiro, sequer foram mencionados em qualquer inquérito.

O caso mais eloquente é o do general G. Dias, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência. Ele chegou a oferecer água gelada e a atuar como cicerone para os arruaceiros que invadiram o Palácio do Planalto. Sua responsabilidade, porém, nunca foi apurada e contra ele não pesa qualquer acusação.

A coluna, em determinada altura, insistia na necessidade de acabar com a polarização que havia tornando irrespirável o ar da cena política do país. E sugeria que o presidente Lula, em vez de endurecer o jogo, se inspirasse na demonstração de grandeza do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira e agisse para distensionar o ambiente.

Isso mesmo. Como Lula, JK foi questionado por adversários logo nos primeiros dias de governo. Só que, no caso dele, as intenções golpistas dos “manifestantes” não se baseavam em “narrativas”, mas em fatos. Dez dias depois da posse, no dia 31 de janeiro de 1956, o governo se viu diante de uma rebelião armada de oficiais da Força Aérea, liderada pelo major-aviador Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão.

A dupla embarcou em um caça no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro, e tomou a proa da base aérea de Jacareacanga, no Pará. Com o apoio da guarnição local, dominou os municípios de Santarém e de Itaituba, no Pará. O governo teve dificuldades para reprimir os golpistas e ainda enfrentou a insubordinação do comando da Aeronáutica — que se recusou a punir os revoltosos. No final, alguns dos envolvidos — entre eles, Lameirão — fugiram e se refugiaram na Bolívia. Veloso foi preso e respondeu a um processo.

É aí que entra a habilidade de JK. Os golpistas acabaram beneficiados por um decreto de Anistia, proposto não pelo Congresso, mas pelo próprio presidente. Mesmo assim, continuaram conspirando. Voltariam à carga em 1959, na Revolta de Aragarças, mas, àquela altura, a tentativa de derrubar o presidente caiu no ridículo logo na largada. Isso porque JK, em vez de ficar o tempo todo se queixando de quem se opunha a seu governo, fez aquilo que tinha sido eleito para fazer. Ou seja, governar.

Mais do que isso, JK fez a população acreditar que estaria muito melhor sob sua liderança do que sob o comando dos defensores da lenga-lenga golpista.

Lula fez muito diferente: não tomou as medidas que deveria ter tomado para melhorar a vida da sociedade, tanto assim que seu governo apresenta índices de popularidade cada vez mais apanhados.

E jamais perdeu uma única oportunidade de culpar os adversários por todos os problemas que seu governo, depois de mais de dois anos no poder, nunca se mostrou capaz de resolver.

O governo optou pelo confronto — um caminho quase sempre arriscado.

No primeiro momento, ele pode até ser visto como uma manifestação de força e conseguir que o medo das consequências force o recuo dos adversários. Acontece, porém, que ao primeiro solavanco, as fissuras aparecem e acabam se voltando contra quem está no poder. É preciso calma.

Lula só teria a ganhar caso não confiasse apenas a seus marqueteiros a solução de seus problemas e passasse a tomar providências que, ainda que contrariassem alguns de seus apoiadores mais tradicionais — como é o caso da elite do funcionalismo público —, gerassem benefícios reais para a sociedade. Se fizesse isso, poderia anistiar os presos do 8 de janeiro e tirar de sua frente um obstáculo que, enquanto existir, custará mais a ele do que a seus adversários.



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