Os escritórios do crime organizado


Nuno Vasconcellos: as penitenciárias brasileiras hoje não passam de escritórios do crime organizado
Reprodução/Youtube

Nuno Vasconcellos: as penitenciárias brasileiras hoje não passam de escritórios do crime organizado

Um relatório divulgado na semana passada pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), ligada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública, ao mesmo tempo em que esclarece pontos importantes, lança uma série de dúvidas sobre o domínio que as facções criminosas do país exercem sobre os presídios brasileiros. Os dados revelam que a organização Primeiro Comando da Capital (PCC) , de origem paulista, continua sendo a maior e mais poderosa do país. Revelam também o Comando Vermelho (CV) , de origem fluminense, segue crescendo e se espalhando pelas cadeias de uma quantidade cada vez maior de estados brasileiros.

De acordo com os números, o CV tem 134 homens no comando de 125 pavilhões prisionais em 25 estados. Um estudo anterior, divulgado em novembro, mostra que, no Brasil, há 1760 pavilhões prisionais sob domínio de um total de 88 facções criminosas . Vistos dessa maneira, os números confirmam uma realidade preocupante, já mencionada neste espaço em outras ocasiões: independente das falhas, das omissões, dos conluios e da incompetência que tenha levado a essa situação, a verdade é que as  penitenciárias brasileiras hoje não passam de escritórios do crime organizado.

De dentro delas, os bandidos que chefiam o crime dão ordens que desencadeiam operações violentas. De lá, eles controlam a contabilidade e sempre demonstram que as celas em que cumprem suas penas, ao invés de segregá-los do convívio social, servem apenas para protegê-los das ameaças que poderiam sofrer por parte da polícia, da Justiça ou de facções rivais.

Exemplos dessa realidade estão por toda parte. Na semana passada, pouco antes de virem a público os dados da Senappen, que indicam a expansão do poder do Comando Vermelho nas cadeias brasileiras, uma operação policial foi deflagrada no Rio de Janeiro para combater uma quadrilha especializada em roubo de cargas.  Pelo que se divulgou, essa quadrilha tinha como chefe máximo — veja só! — o traficante Luiz Fernando da Costa — conhecido como Fernandinho Beira-Mar.

“Segurança máxima”

 Por que o espanto? Qualquer pessoa minimamente informada sabe que, mesmo estando preso desde 2001 — quando foi capturado na selva colombiana —, e mesmo tendo sido o “interno” nº 1 do sistema penitenciário federal , inaugurado em 2006, Luiz Fernando se mantém como um dos bandidos mais atuantes, poderosos e perigosos do país. No caso específico da operação da semana passada, ele estaria dando as ordens aos bandidos especializados no roubo de cargas de dentro da prisão federal de “segurança máxima” de Catanduva , no Paraná, seu endereço atual.

Os presídios federais têm — ou, pelo menos tinham — a fama de contar com um sistema de proteção inexpugnável e capaz de impossibilitar a comunicação de quem está do lado de dentro com quem está do lado de fora. Mas, pelo que se viu nos detalhes dessa operação, não é bem assim que a coisa funciona. Mesmo recolhido a uma dessas cadeias, Luiz Fernando continua agindo com a mesma autoridade que tinha quando estava do lado de fora.

As ordens que partiam de Catanduva chegavam ao presídio Moniz Sodré , no “complexo” de Gericinó, no bairro de Bangu , na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ali, o bandido Cristiano Gregório de Lucena as recebia e, pelo celular, acompanhava e controlava os movimentos dos bandidos encarregados de executar as ordens. O braço-direito de Luiz Fernando repassava as ordens vindas de Catanduva e interagia com os celerados encarregados de executá-las por meio de um grupo de WhatsApp chamado “Família Ana Clara”. As conversas armazenadas no aparelho apreendido pela polícia mostram que, além de não agir sem ordens de Lucena, o pessoal da linha de frente tem que prestar contas do produto do roubo.

Mal pela raiz

Nem se trata mais de discutir a presença de aparelhos celulares num ambiente em que eles não deveriam entrar. A questão é constatar as ramificações que transformam o ambiente das prisões brasileiras em centros operacionais do crime organizado.

O roubo de cargas pode parecer um crime secundário dentro dos valores bilionários movimentados pelo tráfico internacional de drogas. A verdade, porém, é que esse “negócio” acabou se tornando, além de lucrativo e relativamente seguro para os bandidos, um elo importante na corrente que alimenta o próprio tráfico. Com olheiros bem localizados nas transportadoras e dispondo de informações precisas sobre as rotas e as condições de trânsito das mercadorias, os bandidos abordam os caminhões e se apossam de eletrodomésticos, alimentos, artigos de higiene e limpeza ou qualquer outro produto transportado. A situação nesse sentido é tão escabrosa que a logística de transporte no território fluminense é mais cara do que em outros estados e as seguradoras se recusam a emitir apólices para as cargas que transitam pelo Rio de Janeiro.

Os produtos são repassados a interceptadores e o dinheiro obtido em troca deles é utilizado pelos bandidos para a compra de drogas que, distribuídas no Brasil e no mundo por meio das conexões da quadrilha, geram lucros fantásticos. Todos os recursos são contabilizados centavo por centavo e quem ousar pôr a mão naquilo que “pertence” à quadrilha paga com a própria vida pelo desvio de conduta. E mais: na hora em que o “tribunal do crime” decide executar quem age contra seus interesses, não aparece um único defensor de direitos humanos para denunciar o crime!

Tudo isso está descrito com detalhes em relatórios produzidos por investigações sérias conduzidas no Brasil e no exterior. Com o lucro obtido, as quadrilhas compram armamentos modernos, instalam sistemas de monitoramento sofisticados, pagam propinas, subornam autoridades, constroem bunkers, compram mais drogas e fazem de tudo para ampliar o seu poder. Sempre sob a proteção de uma teia bem articulada, com ramificações sofisticadas e interesses que avançam para dentro da própria estrutura do Estado — que muitas vezes se mostra completamente omisso diante dessa situação. E contra a qual a sociedade se sente cada vez mais indefesa.

Faces da mesma moeda

 Ninguém está sugerindo, aqui, que é fácil combater o crime organizado e que a retomada do poder pelo Estado dentro das penitenciárias depende apenas da vontade e da atitude das autoridades brasileiras. Nada disso! Combater o crime organizado é uma tarefa árdua em qualquer lugar do mundo. Se fosse fácil, a Máfia novaiorquina, o Cartel de Sinaloa do México, a Yakuza, do Japão e a Camorra, da Itália, já teriam sido dominadas e seus integrantes, recolhidos às cadeias do mundo inteiro, já não ofereceriam mais perigo.

O que se percebe no Brasil, no entanto, é que, a despeito do esforço que se observa por parte de algumas autoridades, a impressão que se tem é a de o país conta com um sistema que favorece a bandidagem e de certa forma a protege ao invés de combatê-la. A horda de criminosos que hoje mede forças com o Estado e trata a sociedade como refém, é resultado das omissões por parte de quem deveria tê-la combatido no passado. Nesse ponto, o caso do Comando Vermelho é exemplar.

Criado no extinto presídio da Ilha Grande, no litoral fluminense, no ano de 1979, o CV tinha, na origem, a intenção de lutar pela melhoria das condições carcerárias nas cadeias do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, e por não encontrar ninguém disposto a estabelecer limites a suas ações, seus líderes se deram conta de que a organização poderia estender seus tentáculos para fora do sistema prisional e servir a propósitos que fariam o objetivo inicial parecer uma brincadeira de criança.

O CV, assim como o PCC, se organiza conforme o modelo utilizado pelas organizações de esquerda, que inspiraram o surgimento dessas organizações. Atenção!  Ninguém está dizendo, aqui, que exista qualquer ligação entre as quadrilhas e os partidos de esquerda. Tudo o que está sendo dito aqui, e quem diz isso é a história do país, é que, até agosto de 1979, quando foi promulgada a Lei da Anistia, militantes de esquerda condenados pela ditadura militar cumpriam penas no presídio da Ilha Grande, ao lado de assaltantes, traficantes, assassinos e outros criminosos barra-pesada.

Ao longo dessa convivência estimulada pelas circunstâncias, os criminosos comuns aprenderam a se organizar em “células”, em que uma não se comunica com a outra, mas todas seguem a uma mesma liderança. Com o passar do tempo e o sucesso do modelo, o CV se consolidou. Se tornou uma potência do tráfico internacional de drogas, que hoje mantém conexões com narcoguerrilheiros venezuelanos e colombianos e até com terroristas do grupo Hezbollah.

Não se trata de discutir se a organização de origem fluminense se fortaleceu a ponto de medir forças com o paulista PCC. Comparar as forças dessas organizações e perder tempo com o debate que compara a força de cada uma delas só interessa aos próprios bandidos. Uma e outra são faces de uma mesma moeda e cada passo adiante que dão no sentido de ampliar seu poder obriga a sociedade e o Estado a darem passos atrás e se tornarem cada veza mais acuados por elas. Mesmo assim, é bom dedicar algum tempo para tentar entender as circunstâncias reveladas pelo levantamento da Senappen.

No caso do Comando Vermelho, pelo que foi mostrado no estudo, o bando tinha presença, até o ano passado, em vinte das 27 unidades da federação. Com a expansão verificada em 2024, quando fincou sua bandeira no Amapá, Espírito Santo e Pernambuco, a malta só não está presente no Distrito Federal, no Rio Grande do Norte, no Rio Grande do Sul e em São Paulo — berço do PCC. A súcia paulista, por sua vez, está presente em 24 estados, um a mais do que a corja fluminense.

Revelações e omissões

 O relatório contém revelações importantes e, ao mesmo tempo, omissões que atiçam a curiosidade de quem observa os dados com um mínimo de cuidado. O levantamento inclui, por exemplo, o Rio Grande do Norte entre os estados que não registram a presença da gangue fluminense. Acontece, porém, e o Brasil inteiro sabe disso, que o CV está lá, sim!

No primeiro semestre deste ano, em pleno feriado de Carnaval, dois integrantes da corriola fluminense — Rogério da Silva Mendonça e Deibson Cabral Nascimento —, que cumpriam pena em Mossoró (e, portanto, no Rio Grande do Norte),  fugiram da penitenciária de “segurança máxima” valendo-se de uma série de falhas que podem até ter sido fortuitas, mas que parecem cometidas de propósito. E se tornaram os primeiros e, até hoje, únicos presidiários que conseguiram fugir de uma penitenciária federal de segurança máxima desde que a primeira delas foi inaugurada no Brasil, em 2006.

Assim que a fuga foi revelada, as autoridades resolveram se mexer. O chefão do Comando Vermelho, o já citado Luiz Fernando da Costa, que também cumpria pena no Rio Grande do Norte, foi imediatamente transferido para o presídio federal de Catanduva, no Paraná. Na época, a Senappen emitiu nota informado que, após a fuga, foi feito um rodízio de 23 presos entre as penitenciárias federais “com a finalidade de garantir o enfraquecimento das lideranças do crime organizado”.

A medida, ainda segundo a nota da época, era importante para assegurar “o perfeito funcionamento” do sistema. Ela visava “impedir articulações das organizações criminosas dentro dos estabelecimentos de segurança máxima, além de enfraquecer e dificultar vínculos nas regiões onde se encontram as Penitenciárias Federais”.

Seja como for, o sucesso inicial da fuga e o tempo que a polícia levou para  recapturar os criminosos a mais de 1600 quilômetros do presídio, se não serve como prova, pelo menos levanta a suspeita de que a quadrilha fluminense tem, sim, ramificações no Rio Grande no Norte. Se não contassem com apoio externo, os criminosos jamais teriam conseguido ir tão longe, atravessando uma região que não conheciam e desfrutando de liberdade por 50 longos dias.

Pedido de licença

 Um outro ponto observado no relatório do Senappen merece comentários e requer explicações mais detalhadas. De acordo com o documento, a origem fluminense do CV foi o que atraiu para o Rio de Janeiro uma grande quantidade de bandidos de outros estados. E fez das comunidades cariocas refúgios seguros para criminosos do país inteiro.

De acordo com os dados do Sennappen, o estado abriga pelo menos 253 facínoras de outros estados, já devidamente identificados. Desses fugitivos da Justiça, 80 vieram do Pará, inclusive três chefões do crime no estado. A maioria dessa súcia está acoitada na Vila Cruzeiro, no complexo do Salgueiro e em São Gonçalo.

Será que é isso mesmo? Será que o fato de o Rio ser o berço do CV, assim como a topografia acidentada das comunidades e favelas na região metropolitana, é suficiente para justificar a presença de tanta gente perigosa vivendo sem a preocupação de serem perseguidas pelas forças de segurança? Sem a intenção de discutir o mérito do relatório nem de colocar em dúvida a precisão das informações contidas no documento, convém incluir outra hipótese nesse cenário.

Destino da bandidagem

 Desde o ano de 2020, as operações policiais estão praticamente proibidas nas comunidades do Rio de Janeiro. Para colocar os pés em qualquer uma delas, a polícia precisa estar de posse de uma autorização judicial que define onde, como e quando poderá atuar. Isso significa que, na prática, não é a origem do Comando Vermelho, mas a sensação de segurança proporcionada por essa medida, que fez do Rio o destino preferido pela bandidagem nacional. Simples assim.

Essa é uma discussão antiga, repetitiva e chega a se tornar enfadonha. Ao invés de dificultar a vida dos criminosos, as autoridades brasileiras parecem mais preocupadas com o bem-estar dos bandidos do que com a segurança da população. Na semana passada,  o ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski, levou à análise da Casa Civil da Presidência da República a proposta de um decreto que, se for aprovado, praticamente obrigará a polícia a pedir licença ao bandido antes de lhe dar voz de prisão. O projeto chega a proibir, a não ser em casos específicos e em situações planejadas, que os policiais portem armas de fogo em seu trabalho cotidiano.

A intenção anunciada do decreto é mais do que legítima: reduzir o número de mortes de civis por ações policiais. Mas ela deveria ser acompanhada de salvaguardas que dessem à polícia a possibilidade de agir contra o crime com um mínimo de chances de sucesso.

O tema, como se vê, é complexo e precisa ser tratado com profundidade e seriedade. A presença e a atuação das organizações criminosas nos presídios e fora deles tornou-se ostensiva demais para que as autoridades — sobretudo no âmbito federal — continuem a tratar todo criminoso como “vítima da sociedade”. A sensação que fica, no entanto, é a de que a mesma inércia e a mesma omissão que, no passado, permitiram que um grupo criado para lutar pela melhoria das condições carcerárias se transformasse numa organização poderosa, continuam permitindo que essas organizações se fortaleçam.

Combater o crime organizado, como já foi dito, é uma tarefa difícil. Mas o trabalho precisa ser feito e a sociedade precisa perceber que a Estado está agindo em sua defesa — ao invés de dar a impressão de que os bandidos têm autorização para fazer o que bem entendem.



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