Dona Vitória não se rendeu ao medo e fez questão de manifestar sua indignação

O meu primeiro contato com o caso de Dona Vitória aconteceu em maio do ano passado. Vi as imagens que ela tinha acabado de gravar e fiquei impressionado não só com as cenas, mas com o relato dela nas fitas. A indignação se misturava com tristeza, desespero e desesperança em relação a instituições do estado, o mesmo que, até aquele momento, estava lhe negando o direito a segurança.

Foto: Reprodução

Em poucos dias, a Cinpol (Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil) já havia identificado alguns bandidos, mas uma incursão para tentar prendê-los foi abortada por Dona Vitória, que não queria deixar o apartamento em que morava. Só fui apresentado a ela semanas depois e fiquei surpreso com aquela brava mulher. Na ocasião, ele acabara de completar 79 anos, vividos com grande lucidez. Ela ficou eufórica quando eu disse que queria publicar sua história e divulgar sua peregrinação por delegacias e batalhões da Polícia Militar.

Dona Vitória me emprestou as fitas que tinha gravado até então. Começamos a combinar como a reportagem seria feita. Nesta época, Dona Vitória dizia que as coisas estavam mais tranqüilas na Ladeira dos Tabajaras e que não havia necessidade de uma operação policial naquela localidade em frente à sua casa. Ela me disse, entretanto, que gostaria que sua história fosse publicada para que as pessoas pudessem perceber a importância de não sucumbir ao tráfico de drogas.

Essa iniciativa lhe valeu até a inimizade de vizinhos. Segundo Dona Vitória, muitos moradores temiam que os traficantes fizessem atentados contra eles. Ela ignorou o medo e foi adiante. Imbuída de coragem, Dona Vitória tentou me convencer de que poderíamos publicar as imagens e seu relato, mesmo com ela morando ali. Mas, na mesma hora, abortamos qualquer possibilidade de publicação imediata da reportagem. Junto com a polícia, tentamos convencê-la de que o Programa de Proteção a Testemunhas seria a melhor opção para ela. Mas foi tudo em vão.

Ela não gostava da idéia de abandonar o imóvel que comprou com tanto sacrifício. Além de não sair, Dona Vitória continuava filmando os traficantes armados. De vez em quando, contava que os afrontava. Hoje acredito que ela teve sorte, principalmente pelas dezenas de casos semelhantes nos quais os criminosos não foram condescendentes.

Certa vez, um policial falou que os bandidos pouparam a vida dela por acharem que Dona Vitória era maluca. Acho que ele disse a verdade e fico contente por isso. Perdemos o contato depois de alguns meses. Este ano, voltamos a nos falar e, para minha surpresa, ela continuava a filmar. Na ocasião, apenas viciados apareciam nas gravações. Os traficantes se escondiam pelas vielas do morro, longe da câmera de Dona Vitória. Ela desabafou comigo e disse que ainda queria acabar com aquela “pouca vergonha, com o descaso” em frente à janela dela. Mais flexível, ela aceitou sair do apartamento.

Levamos o caso ao secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba, que designou uma equipe da Subsecretaria de Inteligência para investigar a favela. Depois de pensar na possibilidade de alugar um imóvel em outro bairro, ela foi apresentada à equipe do Programa de Proteção a Testemunha, que é coordenado pelo governo federal. Por meio de um convênio com o governo do estado, ela foi aceita e, nos próximos dias, será mais uma beneficiada pelo programa. Hoje, ela está sob proteção da Secretaria de Segurança Pública. Foram três meses até ela vender o seu imóvel e conseguir sair.

Quando soube do resultado das investigações da 12ª DP (Copacabana), ficou radiante e comemorou. Ela sabia, entretanto, que era a despedida da antiga casa. Sabia que sua vida não seria mais a mesma. Saiu às pressas, sem se despedir, mas com a sensação e a certeza de que estava fazendo a coisa certa. Não tive tempo de dizer “obrigado” : aprendi com ela o verdadeiro significado da palavra coragem. Não pude agradecer pela reportagem que ela me deu a honra de mostrar. A única que Dona Vitória produziu na vida e me confiou a publicação.

* Esta reportagem foi publicada pelo Extra em 24 de agosto de 2005

Fonte: Fonte: Jornal Extra