pela lente de Dona Vitória, registros da infância perdida no Rio

“Deus me livre! A gente ter que conviver com isso. Não é brincadeira, não é mesmo” *

Dona Vitória

Os menores não apareciam nas filmagens apenas como mão-de-obra dos traficantes da Ladeira dos Tabajaras. Eles também são consumidores da cocaína, maconha, cheirinho-da-loló e crack vendidos no morro. Algumas cenas de crianças cheirando cocaína chocam. Pelas imagens, os menores aparentam ter entre seis e 16 anos. Sentados um do lado do outro, eles dividem o pó.

Um deles, aparentando ter menos de oito anos, é um dos mais ativos no manuseio da droga. Ele aparece nas gravações servindo os companheiros com um canudo cheio de cocaína. Narrando estas cenas, Dona Vitória demonstra revolta com a condição dos menores e critica as autoridades que deveriam cuidar delas :

– Falo que elas deveriam levar uma lição porque fico com raiva vendo aquelas cenas. Na verdade, eu queria ter dinheiro para construir um abrigo destinado à recuperação destas crianças, que são colocadas no mundo e ficam soltas sem que ninguém cuide delas. Cadê o governo e os juizados de menores que deveriam cuidar dos menores abandonados?

Relembre em imagens a reportagem especial com flagrantes de Dona Vitória

Juíza impressionada

Com sua filmadora, idosa fragrou muitas crianças consumindo drogas
Com sua filmadora, idosa fragrou muitas crianças consumindo drogas Foto: Reprodução

O EXTRA mostrou as imagens para a juíza da 1ª Vara da Infância e Juventude, Ivone Caetano. Ela ficou impressionada com as cenas das crianças consumindo drogas e dos traficantes circulando armados pelo morro. No entanto, Ivone disse que não pode mandar os comissários subirem a favela.

A polícia é a responsável pelo recolhimento dessas crianças. Não posso colocar os comissários para fazerem este papel – explicou a juíza, que salientou a importância de submeter os menores a um tratamento de recuperação.

As imagens também foram vistas pelo promotor Márcio Mothé, que atua na Justiça Terapêutica. Ele ressaltou que nunca viu imagens como as feitas por dona Vitória. Mothé destacou que o número de crianças e de adolescentes detidos nos últimos dois anos é irrisório :

Isso tudo me choca. Mais ainda quando vejo as estatísticas dos últimos dois anos, principalmente no final do ano passado, de adolescentes detidos por porte de drogas. As imagens comprovam a terrível situação de menores que vivem em morros do Rio.

Meninos são grandes consumidores

Para o psiquiatra Jairo Werner, que atua na Justiça Terapêutica, é difícil conseguir recuperar as crianças que aparecem nas imagens. Ele apontou o menino que aparenta ter menos de oito anos como um dos mais afetados pela cocaína.

— Isso comprova o consome precoce de cocaína na cidade. Ela é uma droga que causa alterações graves de humor. O que vemos nessa criança é que ela aparenta já ter uma tolerância muito grande à droga, o que com- prova o uso contínuo. Isso causa um efeito devastador no organismo. Surgem problemas graves no sistema nervoso central e também doenças no coração — explicou Jairo Werner.

Pressa para cheirar

O efeito devastador das drogas também é notado em usuários que aparecem nas imagens consumindo grande quantidade de cocaína. Dezenas deles não conseguiam sair do morro para cheirar o pó: ao deixarem as bocas-de-fumo, os usuários corriam para um terreno baldio da Ladeira dos Tabajaras, onde se drogavam. Numa cena, um viciado aparece jogando o pó num papel branco e depois cheira uma parte da droga. Em seguida, ele come o restante da cocaína.

A maconha também tem vez entre os viciados. Alguns deles compravam trouxinhas e faziam cigarros ainda nos arre- dores da favela. Um quiosque que fica na Ladeira dos Tabajaras era o local preferido des- ses usuários, que fingiam estar bebendo no comércio.

As mulheres também apa- recem como clientes dos traficantes. É possível perceber que algumas delas são estranhas no morro, ou seja, saíram de casas no asfalto. Dona Vitória chega a filmar uma negociação entre dois menores que vendem drogas e uma mulher. Ela tira um cordão e entrega para os menores como pagamento.

Estudo revela drama

Um estudo do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da Universidade Federal de São Paulo revela que crianças com 10 anos de idade já começam a ter con- tato com algum tipo de droga. A pesquisa mostra que 12,7% de jovens na faixa etária de 10 a 12 anos já consumiram alguma droga. A situação é pior na Região Sudeste, onde 15,1% dos jo- vens já experimentaram algum tipo de droga. O álcool e o cigarro são as preferidas, seguidos por solvente.

Lista de perigos

O álcool é a substância que está no topo da lista das drogas mais usadas, com 65,2% dos entrevistados. Em seguida vem o tabaco, com 24,9%. O terceiro lugar pertence aos solventes, com 18%. A maconha aparece com 5,9%, ansiolíticos (tranqüilizantes) com 4,1%, anfetamínicos com 3,7%, e cocaína com 2%.

* Esta reportagem foi publicada pelo Extra em 24 de agosto de 2005.

Fonte: Fonte: Jornal Extra