Quando a Vila Isabel entrar na Avenida, na madrugada de terça-feira, o patrono da escola vai estar longe da Sapucaí. Pela primeira vez em quase uma década, o bicheiro Ailton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, não verá o desfile da habitual frisa que ocupa no Sambódromo, ao lado do primeiro recuo da bateria. Desde dezembro, ele está em prisão domiciliar pelo homicídio do pastor Fábio Sardinha, em 2020. A investigação do assassinato trouxe à tona uma conexão até então desconhecida no submundo: o contraventor teria recrutado, para ser seu segurança e pistoleiro, um ex-integrante dos “Cavalos Corredores”, grupo de extermínio formado por policiais acusado de uma série de crimes no início dos anos 1990 na Zona Norte do Rio.
Além de Guimarães, também está preso pelo homicídio do pastor o ex-policial militar Deveraldo Lima Barreira. Segundo a investigação da Polícia Federal e do Ministério Público do Rio, Barreirinha, como é conhecido desde os tempos de PM, é um dos integrantes da tropa de segurança do bicheiro e passou mais de dois anos monitorando a rotina da vítima para que o crime fosse consumado, em julho de 2020. Décadas antes de ser funcionário da máfia do jogo ilegal, era um soldado “operacional”, temido nas favelas da cidade, que batia ponto no 9º BPM (Rocha Miranda).
Em julho de 1993, um escândalo causou uma reviravolta na carreira do PM. Na ocasião, dezenas de homens armados e encapuzados entraram na comunidade de Vigário Geral, na Zona Norte, e assassinaram 21 pessoas. A investigação do massacre, que ficou conhecido como Chacina de Vigário Geral, concluiu que os atiradores eram PMs motivados por vingança, após a morte de quatro colegas de farda baleados por traficantes locais. Com base em depoimentos de uma testemunha, um informante dos assassinos que contou o que sabia sobre os crimes, a Polícia Militar prendeu mais de 30 agentes, os autodenominados Cavalos Corredores. O soldado Deveraldo era um deles.
Apesar de não ter virado réu pela chacina por falta de provas, Barreira foi envolvido pelo informante em outros crimes cometidos pelo grupo. Um deles foi o desvio de armas — pelo menos duas pistolas, uma 9mm e outra .45, e uma espingarda calibre 12 — apreendidas durante uma operação no Morro Jorge Turco, em Rocha Miranda, em 1992. Segundo o informante, o soldado e três colegas do 9º BPM não apresentaram o material em nenhuma delegacia, mas “procuraram pessoas ligadas à contravenção do denominado jogo do bicho, para quem venderam as armas arrecadadas”. Em janeiro de 1996, Barreira foi condenado a oito anos de prisão pelo crime.
O soldado não se entregou, abandonou a PM e caiu na clandestinidade. Após ser expulso da corporação por deserção, foi para o outro lado do balcão: de fornecedor de armas para bicheiros, virou integrante da máfia do jogo. Em 2010, foi um dos 43 alvos da Operação Alvará, da Polícia Federal, contra integrantes da quadrilha de Capitão Guimarães que atuavam em Niterói.
Na ocasião, Barreira foi identificado pelo Ministério Público Federal como “chefe do grupo de policiais e ex-policiais que prestam serviços de fiscalização, informação, aliciamento de outros policiais, intimidação, apreensão de máquinas sem selo e cobrança de maquineiros e comerciantes”. Também marcava encontros para pagamento de propinas a policiais que trabalhavam na região, para que máquinas da quadrilha não fossem apreendidas. Segundo a investigação, na época, o ex-PM respondia diretamente a Wilson Vieira Alves, o Moisés, amigo de Guimarães dos tempos de Exército — ambos serviram na Brigada de Infantaria Paraquedista — que virou seu comparsa na contravenção.
No dia da operação, no entanto, Barreira não foi encontrado pela PF: os agentes descobriram que ele recebeu a informação de que a ação aconteceria e fugiu. O ex-PM jamais foi capturado ao longo da instrução do processo. Ao pedir sua prisão, o MPF afirmou que o agente era “um fantasma, um homem que vive nas sombras preservando-se ao máximo da exposição, sem endereço certo nem respeito às intimações do Poder Público”. Quando caiu na clandestinidade e passou a trabalhar para a quadrilha, Barreira passou a usar vários nomes e documentos falsos para despistar a polícia. Aos maquineiros, por exemplo, ele dizia se chamar “Gilson”.
Em 2016, foi condenado a 13 anos e três meses de prisão pela Justiça Federal por associação criminosa, corrupção ativa e descaminho. A condenação foi mantida em 2018. O ex-PM não havia sido localizado para cumprir a pena até dezembro passado, quando foi preso em casa, na Barra da Tijuca.
Ex-chefe morto a tiros
Nos últimos anos, a estrutura da quadrilha do bicheiro mudou, e Barreira subiu na hierarquia. Em 2014, Guimarães e Moisés romperam por desavenças relacionadas ao controle de pontos de jogo. Barreira, por sua vez, se afastou do antigo chefe e passou a responder diretamente ao patrono da Vila Isabel. Já Moisés foi morto a tiros em setembro do ano passado num posto de gasolina na Barra da Tijuca: um homem desceu da garupa da motocicleta e atirou. O crime ainda não foi esclarecido.
Segundo o MPRJ, já sob as ordens de Guimarães — que além de patrono da Vila, é pai do atual presidente da escola, Luizinho Guimarães —, Barreira e o policial civil Alzino Carvalho de Souza, outro agente da tropa do bicheiro preso pelo crime, passaram a coordenar o monitoramento do pastor Fábio Sardinha.
A vítima, segundo a investigação, foi morta porque desviou dinheiro da quadrilha. Sardinha acabou executado com quatro tiros no rosto e nas costas, na frente de seu pai, num posto de gasolina em São Gonçalo. O GLOBO não conseguiu contato com os advogados de Barreira. A defesa de Guimarães confirmou que ele vai passar a noite do desfile em casa.
Fonte: Fonte: Jornal Extra